INTRODUÇÃO
Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o romance Clara dos Anjos é uma denúncia áspera do preconceito racial e social, vivenciado por uma jovem mulher do subúrbio carioca.
O grande historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Holanda, já apontava, escrevendo sobre Clara dos Anjos, que é muito difícil “escrever sobre os livros de Lima Barreto sem incorrer um pouco no pecado do biografismo”. Poucos escritores brasileiros foram tão obsessivos na investigação da temática do preconceito quanto Lima Barreto. Mulato, nasceu em 1881, mesmo ano em que o também mulato Machado de Assis introduzia o Realismo na literatura nacional com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Aluísio Azevedo inaugurava a Naturalismo no Brasil com o romance O Mulato. Não são apenas coincidências. A questão do preconceito contra a mestiçagem, já denunciada no obra de Aluísio Azevedo, será fundamental no pensamento nacional entre a implantação do Naturalismo e a do Modernismo, em 1922, ano da morte de Lima Barreto. Até por razões pessoais, e por viver exatamente nesse período, sempre retratando-o de forma crítica e até ressentida, o autor de Clara dos Anjos seria o escritor que mais sentiria (na pele) o preconceito e o retrataria com tintas mais ácidas na nossa literatura. É ainda Sérgio Buarque de Holanda que melhor resume como essa temática se apresenta em Clara dos Anjos.
ENREDO
Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio carioca com seus pais, Joaquim e Engrácia, mulher “sedentária e caseira.” Joaquim era carteiro, “gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora”. Também “compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.” Além da música, a outra diversão do pai de Clara era passar as tardes de domingo jogando solo com seus dois amigos: o compadre Marramaque e o português Eduardo Lafões, um guarda de obras públicas.
Marrameque e as rodas literárias
Poeta modesto, semiparalisado, Marramaque freqüentara uma pequena roda de boêmios e literatos e dizia ter conhecido Paula Nei e ser amigo pessoal de Luís Murat.
A descrição dessa figura revela a crítica de Lima Barreto a vários aspectos da vida literária brasileira:
"Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério, em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido a seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semiparalítico do lado esquerdo, tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de boêmios literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de coisas de literatura, se discutia muita política, hábito que lhe ficou. (…)
A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram estimáveis. Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele.
Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha grande garbo e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e se dava com Luís Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a todos em que qualidade fizera parte do grupo literário. Os que o conheciam, daquela época, não ocultavam o título com que partilhava a honra de ser membro de um cenáculo poético. Tendo tentado versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter fizeram-lhe ver logo que não dava para a coisa. Abandonou e cultivou as charadas, os logogrifos, etc. Ficou sendo um hábil charadista e, como tal, figurava quase sempre como redator ou colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de boêmia literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a mão, quase sempre sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e ficando semi-inutilizado, depois de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde lugar de contínuo, para ter com que viver. Os seus méritos e saber, porém, não estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas. (…)
Tendo vivido em rodas de gente fina — como já vimos — -, e não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento — Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista."
Lima Barreto denuncia, na figura de Marramaque, a influência das rodas literárias, grupos fechados que abundam no Brasil; a cultura da oralidade, dos que aprendem “muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas”, tendo um cultura superficial, de verniz; e o azedume dos que não conseguem brilhar nas “rodas de gente fina”.
Clara: a “natureza elementar”
Clara era a segunda filha do casal, “o único filho sobrevivente…os demais…haviam morrido.” Tinha dezessete anos, era ingênua e fora criada “com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.”
O autor reitera sempre a personalidade frágil da moça – sua “alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor” – como resultado de sua educação reclusa e “temperada” pelas modinhas:
“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.”
Essa “natureza elementar” de Clara se traduzia na ausência de ambição em melhorar seu modo de vida ou condição social por meio do trabalho ou do estudo:
“Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. (…) Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.”
A descrição de Clara reforça os malefícios da formação machista, superprotetora, repressiva e limitadora reservada às mulheres na nossa sociedade. Ecoa, portanto, a descrição de Luísa, do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós, ou a Ana Rosa de O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Todas são, na verdade, herdeiras diretas da figura de formação débil, educada nas leituras dos romances românticos, que é Emma Bovary, criada por Gustave Flaubert no romance inaugural do Realismo, Madame Bovary (1857).
Cassi: o corruptor
Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber em casa o pretendente de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição social melhor. Assim o descreve Lima Barreto:
“Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.”
O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta afastá-lo de Clara quando percebe seu interesse. Na festa de aniversário da afilhada, provoca Cassi e deixa claro que ele não é bem-vindo ali e que seria melhor que se retirasse. Cassi vinga-se de modo violento: junta-se a um capanga e ambos assassinam Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao padrinho, passa a temê-lo, mas ele consegue seduzi-la, principalmente ao confessar seu crime, dizendo que matou por amor a ela.
Malandro e perigoso, Cassi já havia se envolvido em problemas com a justiça antes, mas sempre fora acobertado pela sua família, especialmente sua mãe, que não queria que fosse preso. Assim, conseguia subornar a polícia e continuar impune, mesmo depois de ter levado a mãe de uma de suas vítimas ao suicídio e da perseguição da imprensa.
O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao descrever a figura do sedutor. Branco, sardento e de cabelos claros, é a antítese de Clara. Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até os animais da predileção de Cassi, os galos de briga, são apresentados com visível má vontade: ‘horripilantes galináceos’ de ‘ferocidade repugnante’.”
O desfecho
Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela vizinha, dona Margarida, que procurara na tentativa de conseguir um empréstimo e fazer um aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua mãe. É levada a procurar a família de Cassi e pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara, mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer se casar com seu filho. Clara “agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos.”
O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a condição social da mulher, pobre e negra, geração após geração. No final do romance, consciente e lúcida, Clara reflete sobre a sua situação:
“O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...”
E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família de Cassi Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se falasse em nome dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais condições: “— Nós não somos nada nesta vida.”